Em entrevista exclusiva, o economista José Roberto Afonso fala sua visão sobre as propostas de reforma tributária que estão em discussão no país

Por Agência CNT Transporte Atual

17/05/2023 – 16h18

Economista, professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa) e pesquisador do CAPP (Centro de Administração e Políticas Públicas) da Universidade de Lisboa, José Roberto Afonso é considerado um dos pais da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) devido ao seu trabalho como assessor no Senado Federal à época de sua aprovação. Em entrevista à Revista CNT Transporte Atual, Afonso explicita sua visão sobre as propostas de reforma tributária que estão em discussão no país. Para ele, uma boa estratégia para desenhar um sistema tributário é atender a um plano nacional de desenvolvimento: “É muito pequeno reformar um sistema para arbitrar imposto entre este e aquele setor, quando todos pertencem à mesma economia”. Ainda sobre as propostas em pauta, o economista alerta para a necessidade de diversificação de alíquotas para o setor de transporte, considerando as grandes diferenças entre os modais. “Se o transporte não for considerado indutor e facilitador da economia, um imposto genérico sobre o consumo pode se tornar traumático para o setor”, afirma Afonso, que completa reforçando não ser possível reformar o sistema tributário sem, em paralelo, propor um novo acordo federativo.

O advento de um arcabouço fiscal atrelado à arrecadação não estaria tornando demasiadamente “tentadora” a aprovação de uma reforma tributária que implique aumento global da carga tributária?

Discordo dessa opinião. Não será governo ou mercado, mas o Congresso, que decidirá — e não me parece que o faz por tentação ou pressão. Regime fiscal e reforma tributária são objetivos de duas propostas legislativas diferentes: uma é lei complementar; outra, emenda constitucional. Em comum, ambas tratam de instituições ou regras do jogo. Igualmente em comum é supor que elas ditam o resultado do jogo, o que é um erro. O tamanho da carga tributária ou da dívida pública depende de leis que fixam alíquotas ou de orçamentos que autorizam déficit e quanto se emitir em títulos. Ou seja, ambas não são matéria de leis maiores.

 

É possível que a reforma tributária, como vem sendo discutida (PEC 45/2019 e PEC 110/2019), focada em consumo, deprima a oferta de serviços e, na ponta, a geração de empregos? Há de se falar em nível máximo de tributação do consumo?

 

Não. Normas constitucionais não fixam o nível da tributação, mas criam condições para que ela venha a ser exigida. Um bom exemplo é o imposto sobre grandes fortunas, autorizado pela reforma tributária constitucional de 1988, mas nunca regulamentado. O foco na tributação do consumo é por ser aquela categoria tanto a que está mais longe do padrão internacional (concentrada no imposto sobre valor adicionado) quanto a que gera quase metade da arrecadação nacional. Com ou sem reforma, se houver incidência excessiva sobre o consumo, isso tende a ser repassado aos preços ou reduzir lucros e, a depender da reação dos consumidores, podem cair vendas, produção e emprego. Mas dependerá da forma e do peso do imposto, que necessita de leis ordinárias. Este é um dos nós da questão. Ambas as propostas têm em comum a criação de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), muito comum nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da União Europeia, que definem esta proposta como Imposto sobre Bens e Serviços. Na nomenclatura internacional, imposto sobre bens e serviços é uma categoria maior de como se cobram tributos, que podem, até mesmo, ser sobre faturamento bruto — como hoje se faz com COFINS e ISS. A forma mais comum em todo o mundo, desde países mais ricos até os menos desenvolvidos, é a do imposto sobre valor adicionado. Aqui, o imposto é cobrado em cada etapa de produção e de venda, mas incide apenas sobre aquele valor que foi acrescido pelo produtor ou comerciante. Em tese ou de direito, ICMS, IPI e mesmo o regime não cumulativo do PIS/Cofins já deveriam funcionar como se um IVA fosse um IVA. Na prática, várias distorções o afastam daquela forma, que reforça o dito que não basta inscrever um princípio na Constituição se a legislação e a gestão do imposto não o aplicarem.

 

Ainda sobre efeitos adversos, a reforma pretendida pode trazer inflação, uma vez que setores onerados tendem a repassar o ônus ao consumidor final?

 

A reforma constitucional não dita o tamanho do imposto. Alíquota é fixada por lei e, às vezes, por decreto. Eventualmente, um ato que modifique a forma de apurar o imposto, de tratar um crédito, tanto pode reduzi-lo quanto aumentá-lo. Por princípio, o contribuinte sempre tentará transferir uma eventual majoração de imposto para o seu preço. A depender da reação do consumidor — o que os economistas chamam de elasticidade –, é possível transferir nada, parte ou todo. Em casos de produtos essenciais, como energia ou combustível, o raio de manobra é mais reduzido. A tendência é o aumento de preços e, a depender da renda e do padrão de consumo, a venda pode se manter ou cair pouco.

 

E quanto ao tema da regressividade? Os mais pobres estarão mais vulneráveis? O governo poderá lançar mão de um mecanismo de compensação à parte, mexendo posteriormente na tributação sobre renda e patrimônio, por exemplo? Lembro que essa era uma das “fatias” da reforma que não andou no governo anterior.

 

A regressividade decorre, de forma resumida, do fato de os mais pobres gastarem em consumo quase tudo ou tudo o que ganham. Um sistema que já usa e abusa de tributos sobre consumo, como o atual, já sofre desse problema, e não se paga contrapartida — de forma indireta, poderia dizer que auxílios como Bolsa-Família poderiam ser uma forma de compensação. Prever que será criado um mecanismo de devolução do novo imposto significa a confissão de que a reforma aumentará a regressividade. O que mais preocupa é a efetividade: hoje, quando os contribuintes acumulam créditos contra o governo, eles recebem com grande atraso, quando o recebem — problema grave para exportadores.

 

Bernard Appy, idealizador de uma das propostas, fala em alíquota do IVA na ordem de 25%. Afinal, esse é um “número mágico” ou passível de demonstração? O senhor imagina uma calibragem diferente?

 

A alíquota, única ou agregada, será fixada em lei, ou seja, é matéria para se discutir ou decidir depois. Certamente, será uma alíquota muito alta, acima da maioria dos outros países, porque o Brasil já explora demais impostos sobre consumo, e a reforma não pretende reduzir esse fato. O ideal é que as memórias de cálculo sejam publicadas. Mas, hoje, a Receita Federal sequer divulga o passo a passo de como calcula cada renúncia. Muito ajudaria se fossem finalmente publicados em detalhes as formas de apuração dos impostos.

 

A teoria fala que sistema tributário bom é aquele que contempla simplicidade, neutralidade, transparência, equidade e capacidade de arrecadação. Quais desses atributos se concretizarão caso as PECs 45 e 110 se viabilizem?

 

Esses são os princípios desejados, mas nem sempre se consegue assegurar que cada um seja plenamente seguido em cada imposto. A começar pelo primeiro, simplicidade. É difícil conciliá-lo com o fato de que, seja qual for a emenda, estão acrescentando dezenas e dezenas de normas ao texto constitucional atual, que já é o mais extenso do mundo em matéria tributária. A Constituição dos EUA só contém dois curtos artigos. Não pode ser simples cobrar um imposto que exige incluir, na Carta Magna, mais normas do que aqueles que asseguram os direitos individuais, o que não pode ser nada mais importante para a democracia.

 

Fala-se, ainda, em uma proposta de reforma mais modesta, que condense alguns tributos e ponha fim à guerra fiscal entre os estados. Nesse caso, seria uma reforma aquém das expectativas? Estaria de bom tamanho?

 

Depende de qual seja a expectativa. Se for para melhorar as condições de competitividade das empresas brasileiras, a guerra fiscal do ICMS, em tese, passou a ser pactuada e estaria por decrescer. De fato, os estados poderiam concordar que todos cobrassem o ICMS de uma mesma forma, ter um regulamento único, com as mesmas alíquotas. Não seria preciso mudar a Constituição se um acordo desse fosse implantado.

 

A CNT posiciona-se publicamente em favor da diversificação de alíquotas para o setor de transporte, considerando as grandes diferenças entre os modais. O transporte urbano de passageiros, por exemplo, goza de desonerações e subsídios diversos. Perdê-los seria traumático. Como poderia isso funcionar na prática?

 

Se o transporte não for considerado indutor e facilitador da economia, um imposto genérico sobre consumo pode se tornar traumático para o setor. O caso do transporte urbano de passageiros é emblemático, porque já sofreu a quebra da demanda da covid-19 e não se recuperou até hoje — e, se for submetido a uma única e alta alíquota, certamente tais problemas seriam agravados. É importante alertar que não basta se atentar a como se taxará a prestação do serviço, pois, se houve forte majoração do preço de combustíveis e outros insumos, a isenção ou até uma baixa alíquota poderá levar a aumento indireto e disfarçado do imposto. Esse será o caso de modais de transportes em que se vende para outros contribuintes do mesmo imposto, caso em que o aumento do tributo e do preço do frete, em tese, poderia ser aproveitado pelo adquirente de tal serviço. Mas, se este for um exportador, pode não recuperar o que lhe custa a mais de transporte. Cada caso é um caso e depende muito da forma de incidência.

 

O que se pode colher das experiências internacionais, tanto no que se refere à calibragem da alíquota quanto no tratamento diferenciado de setores da economia?

 

Experiências internacionais, em geral, mostram que, ao se dar tratamento diferenciado a um setor, o equilíbrio econômico deve ser observado. No caso europeu, isso se dá pelo acompanhamento firme do regulador, por duas formas: uma ativa, que verifica o correto cumprimento das normas, e outra passiva, que, diante da queixa de um país, verifica-se se outro as infringiu, e assim se evita a guerra fiscal. Mais recente, a diferenciação tributária passou a ser usada para sustentabilidade ambiental. Isso se dá pela premiação para descarbonização, desde cadeias de produção até veículos. Na Europa, a taxação ad valorem adotada equilibra o preço dos produtos europeus com os importados, ficando o consumidor com preços iguais na escolha, diferindo só em qualidade e outros atributos.

 

Embora a reforma pretendida seja onerosa para o setor de serviços, ela parece beneficiar a indústria, inclusive nos prazos de transição. Faz sentido dar esse viés, pensando em projeto de Estado (penso no processo de desindustrialização)?

 

É muito pequeno reformar um sistema para arbitrar imposto entre este e aquele setor, quando todos pertencem à mesma economia. Uma boa estratégia para desenhar um sistema tributário é atender a um plano nacional de desenvolvimento. Assim, em meados dos anos de 1960, quando se investiu para criar uma economia de forte base industrial de bens de consumo, a reforma assentou em dois impostos, IPI e ICMS, que taxavam fortemente as mercadorias. Hoje, o ideal seria alinhar a criação ou a reforma de impostos ao que se espera para o futuro da economia e da sociedade. O mundo experimenta uma irreversível e radical transformação estrutural, marcada pela digitalização. O ideal seria pensar em um novo sistema tributário, que desse conta desse novo mundo.

 

Outro ponto defendido pela CNT é que a entrada em vigor da reforma seja mais célere do que os textos estão prevendo (10 anos!). A CNT deseja apenas uma vacatio legis, de um ano. Além da burocracia duplicada, há realmente o risco de que dois sistemas rodando simultaneamente tragam sobreposições ou bitributação?

 

Se a solução que eventualmente venha a ser adotada pode já nascer velha diante da nova economia e sociedade, não faz sentido uma transição longa. E ignora a realidade, por exemplo, que a maioria dos estados brasileiros unificou a alíquota do ICMS e a implantou em poucos meses, sem maior atenção de especialistas e da mídia. De certa forma, anteciparam e já adotaram a essência da proposta do IBS e quase sem qualquer transição.

 

Finalmente, um ponto sensível é a conversão em créditos dos gastos em combustíveis (principal insumo, fora mão de obra). A Confederação preocupa-se com o mecanismo monofásico e a dificuldade de se habilitar ao crédito. Esse temor procede? O senhor tem algum pensamento sobre a mecânica do creditamento?

 

Sim, esse é um aspecto tão ou mais sensível do que a alíquota em si. Se for seguido o padrão mundial e adotada uma solução geral de que todos os bens são debitados na venda e creditados em sua compra, a questão-chave passa a ser a adoção de alíquota zero (e não a isenção), o registro do crédito e, no caso de seu acúmulo, a devolução pelo fisco, como fazem em todo mundo. Isso está longe de ser uma prática recorrente no Brasil quando tratamos de empresas. Para se ter certeza de que a regra será adotada pela adoção de um IVA geral, com alíquota unificada, que certamente levará a forte acúmulo de crédito, o recomendável seria começar a restituir os saldos credores dos impostos vigentes. No lugar de promessas, é preciso demonstração concreta e antecipada à reforma.

 

O senhor vislumbra uma reforma do sistema tributário em que haja expressiva melhoria do ambiente de negócios e da produtividade?

 

A digitalização radical seria a melhor forma e a mais imediata de melhorar o ambiente de negócios. Diante da nova realidade econômica e social, seria melhor investir mais em práticas do que em leis.

 

Dá para fazer uma reforma dessa envergadura sem propor um novo pacto federativo?

 

Não. O pacto federativo da Constituição de 1988 se deu em torno do sistema tributário. Até se pode reformar o sistema, mas será preciso fazê-lo junto com um acordo federativo. O ambiente político é propício para negociação.