Na visão deles, tem sido recorrente a proposição de obrigar o Sistema S a bancar os inevitáveis gastos públicos, apesar de seus recursos e suas entidades não integrarem o orçamento fiscal da União

 

Por Agência CNT Transporte Atual

O economista e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), José Roberto Afonso, e o analista do Senado Federal e especialista em orçamento público, Leonardo Ribeiro, defendem, em artigo, a manutenção da arrecadação compulsória ao Sistema S.

 

Veja a seguir a íntegra do texto, publicado originalmente no site da Conjur.

 

Não há tentação maior do que prometer um benefício, ainda mais para eleitores, e transferir a conta para terceiros. É uma pedalada olímpica. Nesse sentido, o orçamento público no Brasil parece que disputa uma prova de salto em distância para se afastar das premissas éticas que cercam princípios orçamentários e regras fiscais, por vezes até constitucionais.

 

Na corrida das finanças públicas, a alcunha de pedalada fiscal se aplica aos atos de governo que buscam driblar as regras fiscais em vigor para viabilizar a criação de novos programas ou para demonstrar uma situação fictícia das contas públicas [1]. À medida em que se aproxima da reta de chegada das eleições, esse distanciamento ganha ainda mais força: não há nada mais tentador do que oferecer uma benesse que não precisa ser paga pelo benfeitor.

 

Neste ano que antecede as eleições, voltaram à cena ideias e propostas para financiar ações sociais sem autorização orçamentária e com recursos de entidades privadas. É o caso recente da iniciativa para criar um bônus financeiro destinado a jovens trabalhadores.

 

Ainda que dependa de lei, constituindo inegavelmente um programa de governo, a regulamentação dessa nova assistência social vem se materializando por atos públicos que criam gastos sem observância das regras fiscais em vigor. A fim de se transferir o custo do programa para entidades privadas, tem sido recorrente a proposição de obrigar o Sistema S a bancar os inevitáveis gastos públicos que cercam o bônus para jovens trabalhadores, apesar de seus recursos e suas entidades não integrarem o orçamento fiscal da União.

 

Antes de tudo, a Constituição de 1988 universalizou o orçamento e determinou que nele seja incluído toda e qualquer despesa do governo, seja da Administração direta, seja da descentralizada. Por sua vez, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, entre outras regras, passou a exigir a compensação fiscal na criação de despesas obrigatórias de caráter continuado. É preciso aumentar receita ou reduzir despesa de forma permanente para compensar medidas que acarretem maior gasto corrente obrigatório.

 

A esse aparato institucional soma-se a emenda constitucional de 2016 que fixou um teto de variação dos gastos federais atrelado à taxa de inflação. Para o próximo ano, o Poder Executivo federal contaria com uma restrita margem fiscal para novas despesas tendo em vista, entre outras medidas, a elevação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e dos precatórios judiciais.

 

Críticas à má gestão de recursos e defesa de objetivos sociais têm sido usados como argumento que justificaria a transferência de obrigações estatais para entidades dos Serviços Nacionais de Aprendizagem (Sistema S). Essa engenharia fiscal acompanha um bordão repetidamente anunciado pelo Ministério da Economia: “Vamos passar a faca no Sistema S”. Mas é justamente o oposto desse bordão o que se pretende fazer na prática quem isso defende: não se cortaria gasto, mas o aumentaria e ainda o esconderia — no caso de criar um benefício assistencial e o pagar e tramitar por fora do orçamento público.

 

Proposta em tramitação no Congresso pretendia criar um auxílio financeiro para jovens contratados na forma do Bônus de Inclusão Produtiva (BIP). Tomando o salário mínimo por referência, seria pago até um quarto do número de horas de trabalho pactuadas, respeitando-se o limite de R$ 275. O novo programa assistencial custaria uma boa grana: R$ 17,2 bilhões entre os anos de 2022 e 2026 [2]. A fim de se viabilizar o novo programa social driblando as regras de controle do gasto público, tendo em vista seu elevado custo, a proposta articulada pelo governo no Congresso busca saídas com base em manobras específicas.

 

A primeira manobra é aquela que evita o caput do artigo 17 da LRF, em que se exige compensação fiscal de medidas que aumentam gastos correntes, obrigatórios e de caráter continuado. A intenção da LRF com esse dispositivo é promover revisões de gastos ou do sistema tributário mediante compensação fiscal quando há criação de nova despesa. A regra não se aplica a investimentos e inversões financeiras para justamente incentivar a qualidade do gasto nesse sentido.

 

Para efeito de compensação, a LRF exige demonstração de que a nova despesa não afetaria as metas de resultado fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Para tanto, a lei oferece duas vias compensatórias: aumento permanente de receita ou redução permanente de despesa.

 

Em tempos de proximidade das eleições, esse mecanismo torna-se um desafio. Isso porque quaisquer medidas que aumentem despesa pública com atributos tipicamente assistenciais e de curto prazo — corrente, obrigatório e continuado — implicariam perda para algum segmento da sociedade como decorrência da redução de despesa ou do aumento de impostos. Nesse contexto, uma forma de driblar o comando legal da LRF é desenquadrar a nova despesa como continuada, desobrigando o gestor a adotar medidas de compensação.

 

De acordo com a justificativa do último relatório da MP 1.045, o novo programa social para jovens trabalhadores seria “custeado pela União, até o final de 2021, com base no valor horário do salário mínimo, limitado a 11 horas semanais. Para os anos seguintes, o encargo passa para o Sistema S, podendo, em caráter complementar, nos termos de regulamento aprovado pelo Ministério da Economia, ser pago com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador e do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza”.

 

Nota-se que o orçamento da União bancaria temporariamente o auxílio financeiro, desqualificando-o como despesa continuada. Dessa forma, o Poder Executivo federal consegue contornar o artigo 17 da LRF, bancando o BIP sem compensação fiscal.

 

A segunda manobra para viabilizar o BIP envolve um dos mais importantes princípios dos orçamentos: a universalidade das receitas e despesas. Nos termos do artigo 165, §5º, da Constituição Federal de 1988, todas as receitas e despesas do Estado devem ser abrangidas pelo orçamento público, incluindo não apenas pessoas jurídicas de direito público, mas também seus fundos, entidades da Administração direta e indireta, as fundações instituídas e mantidas pelo Estado, as empresas controladas pelo poder público e as entidades vinculadas à seguridade social. De acordo com esse mesmo dispositivo constitucional, o orçamento público é composto por três partes distintas, quais sejam: orçamento fiscal, de investimentos e da seguridade social.

 

Cabe também ressaltar que a Lei nº 4.320, de 1964, ao dispor sobre as normas gerais dos orçamentos públicos no país, determina que a lei orçamentária compreenda todas as despesas próprias dos órgãos do governo. Trata-se de um princípio básico de um Estado democrático de Direito: toda despesa pública realizada pelo Estado deve estar autorizada em lei. Esse mandamento legal pode ser encontrado implicitamente na Constituição em diversos dispositivos, como, por exemplo, nos artigos 165, §§5º, 6º e 9º, 167, 169 e 52, incisos V a IX.

 

Sem dúvida, o BIP é uma boa proposta e um meritoso programa social, mas que deve fazer parte do orçamento do Ministério do Trabalho, do mesmo modo que o seguro-desemprego. Claramente é uma transferência direta de recursos para jovens trabalhadores, regulamentada por lei e financiada a fundo perdido. É um gasto que não provoca variação patrimonial ativa em unidades de governo, sendo uma política pública desenhada por um órgão especial da Administração direta: o Ministério da Economia. Curioso ainda notar que, em caráter complementar, o próprio ministério teria competência para regulamentar o uso do FAT, o que confirma a natureza pública do gasto do BIP.

 

Ocorre que o governo tem sinalizado a intenção de se livrar dos encargos do BIP ao empurrar o programa para o Sistema S, formado por instituições privadas sem fins lucrativos que colaboram com o Estado como entes paraestatais. Tenha-se claro que essas entidades administram verbas extraorçamentárias de natureza parafiscal, recolhidas diretamente junto às empresas do setor produtivo, com patrimônio próprio e prerrogativa de autogestão com autonomia administrativa. A Suprema Corte corrobora essa fundamentação:

 

“Os serviços sociais autônomos integrantes do denominado ‘Sistema S’, vinculados a entidades patronais de grau superior e patrocinados basicamente por recursos recolhidos do próprio setor produtivo beneficiado, ostentam natureza de pessoa jurídica de direito privado e não integram a Administração Pública, embora colaborem com ela na execução de atividades de relevante significado social. Tanto a Constituição Federal de 1988, como a correspondente legislação de regência, como a Lei 8.706/93, que criou o Serviço Social do Transporte (SEST) asseguram autonomia administrativa a essas entidades, sujeitas, formalmente, apenas ao controle finalístico, pelo Tribunal de Contas, da aplicação dos recursos recebidos”.

 

Enfim, a ideia de custear o BIP, ou qualquer outro gasto público, à custa dos recursos próprios do Sistema S, constitui uma distorção. É inconstitucional, pois fere o princípio da universalidade e integralidade da despesa no orçamento público e esconde um gasto do controle de sua variação máxima anual. É ilegal, pois fere a Lei nº4.320, de 1964, mais a LRF, ao realizar gasto sem dotação e muito menos empenho, fora realizar gasto sem contar para controle da meta de resultado fiscal.

 

Décadas depois, não podemos retroceder a um orçamentário monetário, nem mesmo sob o manto de justificativas sociais. Por maior que seja a emergência diante do futuro cada vez mais incerto do trabalho, não se justifica flertar novamente com pedaladas fiscais — que, aliás, já renderam recente impeachment. Esse desafio deve ser solucionado com propostas competentes e criativas que conciliem responsabilidade social e fiscal.

 

Ainda que aleguem que não há pedalada e só querem “passar a faca no Sistema S”, na prática, querem transferir para seus orçamentos privados o que se gastará a mais e se omitirá do orçamento público. É uma tentativa de drible inegável de princípios orçamentários e regras fiscais.

 

Se essas novas propostas já foram abortadas ou abandonadas, isso não apaga a recorrente tentação por pedaladas. Deve servir de lição para se resgatar a cultura da transparência e da responsabilidade no tratado das coisas e contas públicas. Em matéria fiscal, não se deve nem pensar em pecar. Sim, já passa a hora de se passar a faca, mas é na tentação por pedaladas que nunca resolveram crises fiscais e, quando reveladas, geram novas crises — e de confiança.

 

 

Leonardo Ribeiro é analista do Senado Federal e especialista em orçamento público.

 

José Roberto Afonso é economista, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pesquisador do CAPP/Universidade de Lisboa, pós-doutorado pela Universidade de Lisboa, doutor em Economia pela Unicamp e mestre em Economia pela UFRJ.