Geraldo Vianna*

 

Historicamente, o Estado brasileiro – seja no plano da República, seja no da Federação – mostra-se agigantado e disfuncional. Os serviços prestados à sociedade são, em geral, de má qualidade e custo elevado. Há superposição e indefinição de competências, a gerar insegurança jurídica. Nos três Poderes e nos três níveis da administração pública, há excesso de burocracia, de formalidades cerimoniais, privilégios e mordomias indefensáveis. Para bancar essa imensa máquina pública, que se move com grande lentidão, há um sistema de arrecadação extraordinariamente complexo e caro, que, além de tudo, não distribui a carga tributária com necessária equanimidade. É como se tudo tivesse sido criado para não funcionar. E, de fato, funciona muito mal. Para completar, a tão louvada “transparência” revela apenas o acessório, mas esconde o principal, não favorecendo o controle por parte dos cidadãos e pagadores de impostos nem inibindo a corrupção.

 

Por isso é que as reformas administrativa e tributária são tão necessárias e urgentes. E acabarão sendo feitas, provavelmente corrigindo alguns dos defeitos mais evidentes dos serviços públicos e do sistema tributário brasileiro. Há uma mobilização da sociedade neste sentido, o que é muito saudável. Mas, como já aprendemos com as reformas trabalhista e previdenciária, essas soluções não são mágicas nem garantem mudanças perenes. São medidas necessárias à retomada do nosso desenvolvimento econômico, mas não suficientes. Mais cedo ou mais tarde, teremos de ir à raiz, às causas do nosso atraso institucional, promovendo uma ampla revisão da organização do Estado brasileiro, uma verdadeira reforma política, esta, sim, “a mãe de todas as reformas”, como já foi chamada muitas vezes.

 

Mas eu me rendo ao consenso no sentido de que ela tem pressupostos que não estão presentes neste momento. A hora agora é das reformas administrativa e tributária, que estão um pouco mais maduras e podem resolver algumas das distorções acima referidas, embora sejam também muito complexas.

 

De fato, não seria realista imaginar uma reforma política digna deste nome sendo conduzida no âmbito do atual Congresso Nacional, em que se discuta, por exemplo, reduzir drasticamente o número de partidos, a quantidade de Deputados ou alterar a distribuição de cadeiras entre as UFs; em que se busque diminuir o número de estados e municípios; em que se questione o nosso sistema bicameral, a real necessidade da existência do Senado Federal ou a redução do número de senadores por UFs e, quem sabe, a duração de seus mandatos. O que dizer de parlamentares, no exercício de seus mandatos, discutindo de forma isenta, além das já citadas, outras questões vitais para seus próprios interesses político-eleitorais, tais como voto proporcional em lista fechada, voto distrital, puro ou misto etc.? Menos oportuno ainda seria ressuscitar a clássica polêmica “presidencialismo vs parlamentarismo”, que já foi objeto até de dois plebiscitos em nosso país, realizados em 1963 e 1993, em que a mudança de forma de governo foi rejeitada por larga maioria.

 

Eu mesmo sempre defendi com entusiasmo o parlamentarismo e o voto distrital misto. Mas reconheço que, no atual quadro político, seria inoportuna e inconveniente a discussão desses temas, para não dizer impossível. O exame e a deliberação sobre propostas dessa natureza só se viabilizam num quadro de ampla revisão constitucional, em decorrência de crise política incontornável ou mesmo de quebra da ordem constituída e, ainda assim, pela via de uma Assembleia Constituinte exclusiva, isto é, que seja convocada unicamente para escrever uma nova Carta, sem se confundir com o exercício da legislatura ordinária. Seria ingênuo esperar que deputados e senadores tivessem neutralidade e distanciamento suficientes para enfrentar uma agenda dessa envergadura. Afinal, esses temas são muito sensíveis sob o ponto de vista dos projetos políticos de cada um deles.

 

Sendo assim, o que faria sentido discutir no curto prazo? Acho que apenas algumas questões pontuais – especificamente no tocante à organização partidária e ao processo eleitoral – que já estão colocadas e que talvez tenham condições de avançar, mesmo porque a maioria delas dispensa emendas constitucionais. Menciono a seguir algumas dessas matérias.

 

Partidos políticos

 

A legislação existente (cláusulas de desempenho e proibição de coligações para pleitos proporcionais) vai num bom caminho e tem potencial para reduzir quase pela metade a quantidade de partidos com representação no Congresso Nacional, já a partir do pleito do ano que vem. E continuar reduzindo nas eleições seguintes. Para isso, é preciso evitar que prosperem tentativas em curso de protelar a vigência daquelas cláusulas e de criar subterfúgios como as “federações partidárias”.

 

Mas, além disso, seria importante inverter a tendência de proliferação de legendas, a partir da eliminação, ainda que gradual, de alguns “penduricalhos legislativos” que aumentam o gasto público e não contribuem para o aperfeiçoamento da nossa democracia. Estão neste caso o fundo eleitoral, o fundo partidário, o tempo de rádio e TV, a propaganda eleitoral gratuita e outras regalias que foram se acumulando ao longo dos anos, com as mais variadas justificativas, todas equivocadas.

 

Excessos de regulação do processo eleitoral

 

Por conta da regulação excessiva do processo eleitoral, em nome de evitar a corrupção, os abusos de poder de toda natureza que prejudicam a equanimidade da disputa, e de outros nobres objetivos, instaurou-se, ao contrário, a completa insegurança jurídica, pela via da judicialização da política. Concluídas as votações e apurações, ninguém sabe se ganhou mesmo (algo parecido com o que se deu no futebol, com a introdução do VAR). Não basta vencer no voto. É preciso ganhar também no “tapetão”. A hipertrofia do Judiciário na vida política nacional acabou gerando o fenômeno oposto: a politização da Justiça; ambos indesejáveis e deformadores das instituições republicanas.

 

Penso que o desmonte da parafernália legislativa e jurisprudencial criada ao longo do tempo para tentar dar segurança às eleições – e que acabou produzindo o resultado oposto, como já visto – é um dos pontos a serem atacados com coragem pela classe política. No próprio Judiciário, há quem perceba que o limite do razoável nessa matéria foi ultrapassado há muito tempo. Faríamos bem se estimulássemos um debate sério em torno disso.

 

Sistema de votação – urnas eletrônicas

 

Se há um aspecto em que o nosso país não fica a dever nada a nenhuma outra nação do mundo é no sistema de votação, graças às urnas eletrônicas que aqui já têm uma longa tradição e são objeto de admiração internacional. Nunca se soube de nenhuma denúncia consistente de fraude ou irregularidade desde que elas começaram a ser utilizadas, há mais de 25 anos.

 

Tanto em termos de hardware, como em software, e também no que diz respeito à segurança do sistema, estamos muito à frente de qualquer grande democracia do mundo, como podemos constatar ao acompanhar eleições em outros países. Em condições normais, portanto, este não deveria ser um ponto de preocupação.

 

Entretanto, eis que surgem, do nada, discussões acaloradas sobre uma eventual inconfiabilidade do nosso sistema, por não ser ele auditável. E, com esse pano de fundo, a todo instante ouve-se questionamentos e até ameaças de não reconhecimento do resultado do pleito do próximo ano, sob a alegação de possíveis fraudes.

 

Depois do que estamos vivendo nesses tempos de pandemia e de tensão política, tudo o de que não precisamos é de um pleito presidencial sub judice, a despertar paixões descontroladas e instabilidade institucional. Além disso, o que assistimos recentemente nos EUA, com impugnações do resultado das eleições com base em alegações vazias e sem nenhuma comprovação, recomenda que não confiemos na sorte. Precisamos tirar esse risco da frente.

 

Para isso, tudo indica que há uma solução tecnologicamente viável, que é a do voto impresso, numa urna convencional acoplada à eletrônica, onde o próprio eleitor, após votar, colocará uma réplica, em papel, do sufrágio que ele acabou de digitar. A apuração e a proclamação dos resultados continuarão a ser feitas como atualmente. Será aberto, porém, um prazo curto para eventual auditoria do resultado, por amostragem (1 ou 2% das urnas, escolhidas aleatoriamente), sempre com a presença de fiscais partidários. Feito isso – ex officio ou a requerimento de partido político –, sem que se verifique discrepância importante, a Justiça Eleitoral atestará a integridade do processo e confirmará o resultado.

 

Como se sabe, há projetos de lei tramitando com esse objetivo. Sugiro que apoiemos fortemente o disciplinamento do voto impresso, mais ou menos nos termos acima alinhavados, para ser utilizado já nas eleições gerais do próximo ano.

 

Não há obstáculo tecnológico relevante a que isso seja feito. A única objeção que se levanta é a do investimento que será necessário para que esta inovação seja implantada. Parece ser significativo. Mas, qualquer que seja ele, com certeza será uma ninharia quando colocado na perspectiva da segurança e da lisura de um pleito como será o de 2022, de importância capital para o futuro do nosso país e da nossa democracia.

 

(*) Geraldo Vianna é advogado, presidente da FUMTRAN – Fundação Memória do Transporte e ex-presidente da NTC&Logística – Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (2002-2007).